Aqui estou mais um dia.

Enola \ Alone

Posted in Uncategorized by Shepones on 21/11/2014

Não é prudente desgarrar do leme dos pensamentos por um instante sequer, e mesmo assim nada assegura qualquer domínio sobre as águas. Pressupõe-se algum controle, aquela sensação do oceano requebrando com a volúpia de um quadril, lento e suave, o idealismo dos marujos de apartamento. Mas a natureza é outra, e em algum momento a onda inexorável abrirá sua cabeça ao meio sem aviso prévio. A ansiedade subjuga a mente como o mar a um barco. É aquele buraquinho remendado, uma tensão permanente que varia conforme as chuvas, mas que ainda assim é perene. Aos primeiros pingos, a ansiedade desperta em sua plenitude, de modo que a ausência de instrumentos de orientação dificulta prever se haverá ou não uma tempestade de fato. O ansioso sabe que abandonar o navio não é uma opção, muito embora flerte com a alternativa diuturnamente, de maneira discreta, para não abalar a moral de sua tripulação. Ele busca antes de mais nada a calmaria, um céu azul sem nuvens para enxergar o horizonte com clareza e fincar bandeira onde melhor lhe aprouver.  A tranquilidade não é apenas inveja para o ansioso: ela é fundamentalmente uma dúvida. Ele a conhece como um capitão navega em asfaltos. Para o ansioso, a paz de espírito é um sonho – e a ausência de preocupações, uma utopia.

Homem da cândida

Posted in Uncategorized by Shepones on 04/07/2014

Guardo lembranças da cândida, uma menos voluptuosa, não a Maria Fernanda, uma pena, mas sim o artigo de primeira necessidade. Talvez já tenham criado um substituto mais sofisticado, uma máquina que embranqueça em três minutos, cloro gourmet, o Michael Jackson dos alvejantes, o fato é que, para além de toda sua relevância sócio-cultural nas cidades brasileiras, a cândida teve lá seu papel no desenvolvimento psicossocial das crianças e adolescentes que choraram a execução do amarelinho por Cannigia em 1990 –  eu, por exemplo. O escritor Miltom Hatoum tem uma crônica chamada ‘Lembrança do meu primeiro medo’, e o dele era o medo do rio, coitado, quase se cagou enquanto atravessava um pontezinha qualquer lá na Amazônia e fitou a imensidão de água marrom abaixo dos próprios pés. Na São Paulo do Lazaroni a gente não tem um rio desse tamanho, o Tietê, putz, esse aí faz a molecada é cair na gargalhada – mas em São Paulo tinha o homem da cândida. Era um horror, uma coisa genuinamente assustadora, cu na mão mesmo: molecada lá jogando linha, três dentro-três fora, taco, enquanto o horizonte anunciava aquela kombi carcomida, alto-falante oxidado e entupido pela rouquidão da voz do demônio anunciando um fim prematuro. ‘Olha a cândida’. ‘Olha a cândida, freguesa’. ‘Olha cândida’. Balbuciava a primeira sílaba do ‘olha’ e eu já tava chorando enlutado pela ‘cândida’, correndo desesperado atrás da mãe, que era o Deus possível na época.  Não que eu tenha me transformado num adulto sujinho, juro que não!, mas é que essa coisa de limpeza total, tinindo, branquinho, branquinho, sempre me pareceu coisa de maluco com transtorno obsessivo compulsivo, de quem que não admite nada fora do lugar. De quem não admite uma sujeirinha lá dentro, nada que te transforme num Cascão existencial, não, mas que te lembre que sempre há algo pra ser lavado – pode ser o hoje, o eu, os ontens, nosso reflexo no outro. O homem da cândida foi meu primeiro medo.

Barragens

Posted in Uncategorized by Shepones on 24/06/2014

Há quem tenha se acostumado às vitórias, e para esses sentir o desenrolar de uma derrota equivale a um afogamento, um assombro não consumado que eterniza a falta de ar nos pulmões da ansiedade. O perder causa uma dor paradoxal, na medida em que se deixa afetar menos por ele do que pelo seu reconhecimento, muito embora essa admissão seja necessária para reviver pequenas glórias mundanas. Não se trata de um perda efetiva,  súbita, não é nada disso, mas sim de uma perda de si mesmo, crônica, palpável, desesperadora como uma garganta comprimida pela asma na solidão de um banho frio.  Você já perdeu? Eu perdi e sei disso. Eu sei, sei mesmo, sinto a derrota me estapeando a cara no café da manhã, me violentando no escritório e sodomizando minha paz antes de dormir, mas sou teimoso, burro, uma pedra na cachoeira esperando que a correnteza pare de desabar sobre mim para que eu me livre de todo o lodo impregnado. Eu perdi, sim, sou a derrota incorporada num discurso que a antevia há décadas e que agora não tem mais por onde vazar, um rio de sonhos obstruído pelas barragens do medo.  O fato é que a correnteza nunca vai parar, e não faço a mais puta ideia de como proceder pra mudar o curso da água que está prestes a encher as minhas narinas. Eu estou perdido, e não sei nadar.

Luis Sérgio Person

Posted in Uncategorized by Shepones on 16/06/2014

Caminhando sem muita direção, chutando umas pedrinhas, desviando dos carros que querem te atropelar enquanto você só tenta fazer aquele golzinho na trave de pedra e se consagrar pros teus amiguinhos.  Crescer na rua não deixa de ser um prenúncio. Nem sempre é possível dominá-la: enquanto uns fazem dela um irmão mais novo cheio de cumplicidade inocente, outros fingem que ela não existe, e fogem como de um pai que se impõe pela violência do medo. São centenas de futuros consubstanciados em 300 metros de paralelepípedos e cimento: os boleiros, o mano do skate, o pichador, o que era tudo isso, o polícia, a velha que taca água na criançada, a viúva fofoqueira, o crente, o católico-passador-de-imagem-de-santa-de-casa-em-casa, o católico-passador-de-imagem-de-santa-de-casa-em-casa que xingava a criançada de favelada, a vizinha gostosa lavando a calçada de shortinho jeans, o retirante, o pedreiro que não parava em casa, o playboy metido à surfista, o maconheiro, os angolanos, os baianos, o bêbado louquinho que sumiu e ninguém mais ouviu falar.  A rua forja o eu a partir do reflexo das silhuetas no calor do asfalto – ela é ao mesmo tempo espelho e destino, destino incerto e duvidoso por ceder pouco a pouco seu espaço para a indiferença. Uma rua vazia é um clarão na mata das almas, posto que ela é o centro da humanidade, o espaço onde julgamos e somos julgados, onde admiramos e rejeitamos, onde vivemos e morremos por instantes sob o olhar de quem nunca vimos. A rua é humana, e por isso há também que dela fuja, como se o outro fosse um fardo muito pesado, fruto da incapacidade de reconhecermos nossa essência na diferença.  Há, porém, a certeza de que a rua estará lá, sim, ela estará lá daqui a 10, 30, 100 anos, talvez com uns buracos a mais, quem sabe com postes a menos na calçada, por que não?, mas estará lá,  para caminharmos sobre o seu piche seco e nos dar a chance de cumprimentar de novo aqueles velhos vizinhos do imponderável. Pela rua vivemos, e na sua ausência invariavelmente deixaremos de ser.

Querer

Posted in Uncategorized by Shepones on 14/06/2014

Tanta gente querendo. Querendo ter a melhor vida de todas, querendo viver conto de fadas, querendo a Europa, a Ásia, querendo mais 24 territórios a sua escolha, querendo ser o melhor profissional do mundo, querendo o melhor parceiro, querendo viver sonhos e transformá-los em realidade. Eu também quero. Mas sabe o que eu também quero? Que alguém fale a verdade. Que diga que somos todos peões num tabuleiro com meia dúzia de reis e rainhas, que não vamos passar do Guarujá, que seremos cornos, que vamos ser pais divorciados e ausentes, meros apertadores de botão displicentes em empregos medíocres. Talvez querer menos seja uma saída.

Arrebatamento

Posted in Uncategorized by Shepones on 14/06/2014

Não depende de quanto dinheiro você tem, do futuro que te espera, do passado que te sustenta. Chega uma hora que a repetição do presente faz a gente -você, eu, todos nós- implorar pelo Arrebatamento. Uma catarse, uma epifania, uma visão iluminada que vai engolir tudo que passou e te mostrar uma porta pro céu, aquele céu que você acha que merece que mais que todo mundo a sua volta. Mas… sempre falta aquele ‘e se’ – aquele ‘e se’ que jamais chegará. Nunca, em hipótese alguma. Desiste. O que sobra, então? Adaptação, aquela adaptação bem escondida numa resignação travestida de maturidade.

Bebamos, amigos

Posted in Uncategorized by Shepones on 13/06/2014

Beber sozinho é dividir o eu consigo mesmo. A bebida é uma grande amiga da solidão. No bar, não: estamos nus diante do outro e temos com ele o objetivo comum de compartilhar. De uma escolha bem feita depende a catarse microcósmica que enche uma vida de memórias e carinhos; de uma escolha mal feita, apenas a ressaca que cura pelo esquecimento. A leveza da bebedeira traz consigo o fardo pesado da companhia. As histórias contadas por todos os copos americanos que passam por nossas vidas, as emoções, merdas, erros e acertos. A cada dia que passa, uma latinha a mais se perde no fundo na geladeira, tornando a mesinha na calçada ainda mais irresistível. É no boteco que a realidade se torna inexorável, e é no boteco que a finitude nos iguala e nos aproxima.

São Paulo

Posted in Uncategorized by Shepones on 13/06/2014

Há muitos clichês sobre São Paulo. Acolhedora, diversa, cidade que nunca dorme. Bobagem. Talvez ‘locomotiva do Brasil’ seja mais adequado, afinal o trem paulistano fatalmente passa por cima do Brasil quando ele está (desculpem, não resisti) entrando nos trilhos. Há ainda outro clichê segundo o qual São Paulo é uma cidade conservadora, o que também é impreciso. A verdade, porém, precisa ser dita. E a verdade é: São Paulo é uma cidade provinciana. 

Nós, paulistanos, nos escondemos atrás de todos os clichês que nos interessam para disfarçar esse dado crítico do nosso ethos: somos caipiras que não aceitam a metrópole, irmãos de fraternidade inexistente. Não há acolhimento possível na Rota. Não há diversidade no quarto de empregada. Há um sono profundo nos bares que fecham à meia-noite. O cosmopolitismo de São Paulo é o cosmopolitismo dos turistas que não conhecem a própria cidade. 

O paulistano é um Urtigão que faz do carro, escopeta. 

São Paulo é uma cidade em constante crise de identidade, mas cuja própria identidade está em disputa. Pergunte a qualquer paulistano fora do centro expandido e você notará uma ansiedade de reconhecimento – afinal, o que é o bairrismo senão um movimento de autoafirmação? 

São Paulo não é a São Paulo do ‘Ibira’, não é a São Paulo do Racionais, não é a São Paulo da ‘vila’ ou do Clube Paulistano. São Paulo não é só a cidade que sai na Revista São Paulo aos domingos e nos perdigotos do Datena de segunda à sexta. São Paulo é também a cidade do Horto Florestal; do Jaraguá, da Igreja da Penha, da capela de São Miguel e da Praça do Forró; do campinho de terra em Cidade Tiradentes, do escadão do Eliza Maria; São Paulo é a cidade dos sobradinhos de Santana, do finado Tramway, dos condomínios na Raposo, do Tiquatira, do Jardim Botânico, dos coqueiros da Sabará, das chácaras com ônibus na porta na Cantareira, do Clube Espéria. 

Falar mal da própria cidade é uma atividade recreativa comum entre os paulistanos de todos os cantos da cidade. Nem é preciso entrar no mérito da beleza. Todos já fomos felizes com o(a) feinho(a) gente fina. Mas como uma cidade concretada sobre um fundo de vale e sobre várzeas de rios poderia dar certo, afinal? 

Até que acabou dando bem certo, se for ver. 

Uma vilinha irrelevante que se tornou uma das maiores cidades do mundo. Uma cidade que -sejamos honestos- acolheu, sim, milhões de trabalhadores do Brasil e do mundo em um espaço curtíssimo de tempo. Uma cidade que diante de sua história e circunstâncias tem uma organização invejável (pense em Nova Delhi ou Lagos, por exemplo) e uma oferta cultural imensa, apesar de todos os seus problemas. Pouquíssimas cidades do planeta enfrentariam os problemas que São Paulo enfrentou com tamanha maestria. Guerra contra a Federação; falta de indústrias; migração de massas; uma elite conservadoríssima. Historicamente, São Paulo é um milagre. 

Esse talvez seja o traço mais marcante da nossa identidade. O paulistano é também a maior mulher de malandro do Brasil. 

Os laços que criamos na cidade se confundem com ela própria e é isso que nos enraíza aqui. A casa é onde o coração está. São Paulo já é a cidade dos pequenos amores, dos amigos que saem juntos pra se divertir em qualquer biboca (mas só até à meia-noite!), dos namorados de mãos dadas na bosta do shopping ou na Praça Pôr do Sol. 

Mas… falta a integração.

São Paulo precisa ser a cidade onde o mooquense tenha orgulho do Pari e não ache aquilo um ‘antro’ de bolivianos. Onde o cidadão que mora em Pinheiros saiba apontar a Vila Medeiros no mapa e não ache aquilo ‘o fim do mundo’. Um orgulho real, vivido, frequentado – e não de páginas de jornais. Onde o velhinho da Vila Maria não tenha no imaginário sobre o Capão Redondo cenas da guerra civil em Angola. Onde todos se orgulhem de todas as partes da cidade. Não há amor fora da empatia. Não há cidade fora da integração. 

Por mais que o malandro me bata, eu ainda acredito no afago dele.

“Beleza, pai”

Posted in Uncategorized by Shepones on 13/06/2014

Olha pra dentro e te dá um significado”. Isso foi um negócio bonito que meu pai me ensinou: olhar pra dentro. É bom porque rasga teu ego mais imundo, ainda que a luz incendeie e sempre acabe transformando a espiada num soslaio no mundo ao teu redor. Isso, aquilo, aquilo outro, todos contra todos, sempre um desgraçado tentando descobrir um jeito dinâmico e arrojado pra te foder e você lá, uma pedra na Mata Atlântica ainda cheia de terra fofa e molhada, intocável, resistiu aos índios, aos bandeirantes, ao Prestes Maia, à porra da Odebrecht e até mesmo -veja você!- à autocrítica. Às vezes o coração cansa de procurar e verga em desgosto – o problema é que nunca dá pra saber se o desgosto é de mim mesmo ou do outro. Noutras ocasiões mais efêmeras, bate uma epifania que deixa saudade rapidinho e tu chora de felicidade, como se a lágrima fosse um agradecimento pela vida que pulsa no teu colo. O ponto é que eu pensei, penso, pensá-lo-ei com e sem mesóclise até meu cérebro pifar, pra caralho mesmo, e nunca encontrei e tenho certeza que jamais encontrarei esse maldito significado que meu pai pediu pra eu futucar. Está lá fora ou aqui dentro? Será que deixei na 5ª série A no Gastão Moutinho? No primeiro esporro profissional (profissional pela maestria de quem deu e pela incompetência de quem recebeu)? Numa bota de uma mulher que hoje eu desdenho por pura inveja do filhodaputa que roubou ela de mim? Não sei. Lição dois. “Todo homem deve se comprometer com alguma coisa”. Outra coisa realmente tocante e sensível que meu pai disse pra mim. Claro que o velho jamais verbalizou isso, óbvio, evidente, talvez nunca tenha sequer pensado uma coisa dessas, mas de todo modo é uma ideia atraente que gosto de passar adiante como se fosse um ensinamento de cima pra baixo, de um velho magnânimo prum moleque cabaço que precisa de alguma orientação pra não fazer besteira. Quem nunca quis corrigir as próprias merdas fingindo sabedoria pra exportação? Não precisa se comprometer especificamente com mulher, com o Flamengo, com a Mocidade Alegre, com o socialismo científico, com nada disso – pode se comprometer até com tua coleção de figurinhas, mas tem que se comprometer. Compromisso é paixão e mostra que você tá vivo, ele disse (não, não disse). Ainda não entendi bem qual o meu destino para além do amor próprio e por isso sigo buscando uma alternativa a esse flagelo pós-soviético a que uns chamam de terapia, outros de reflexão. Tateia o céu, coça as pálpebras, franze a testa e pensa como se fosse a morte da bezerrinha, coitada, mas dá seus pulos pra arranjar uma porra de significado pra existência e se comprometa com ele. (Na verdade, verdade verdadeira mesmo, também não tive pai – pra fugir de mim mesmo, tô apenas idealizando o que eu gostaria que ele tivesse me dito). Pois bem. “Beleza, pai”.

Alagoas

Posted in Uncategorized by Shepones on 13/06/2014

É um dia cinza incomum, com uma preguiçosa chuva rala, o que provavelmente desperta a velha ao lado. Seu corpo franzino não para de se mover, esticando o pescoço frágil em todas as direções – não sei bem se por curiosidade ou inquietude. A velha guarda um sorriso tímido que nunca se revela por completo, talvez por não ter dentes. O coque branco firme e as rugas beges e pronunciadas denunciam a idade, embora seja difícil especular – dizem que o sol encurta a vida nestas terras. Falta pouco para a divisa de Alagoas com Pernambuco. O corredor estreito do ônibus tem uma movimentação ininterrupta, com passageiros de tipos variados, a maioria carregando sacolas pesadas e volumosas, alguns com relógios dourados e óculos pirateados, outros falando sem parar. Há um vendedor de água, passageiros de pé e até mesmo um fiscal de linha, o que parece um pouco exagerado diante das pouco mais de três horas que separam Maceió de Ipojuca. A velha observa tudo atenta, mas pode ser apenas indiferença ou ignorância, por que não?, esforçando os olhos miúdos e negros através d’água que escorre pela janela: palmeiras, casinhas sem reboco, taipas, uma pletora de tijolos avermelhados, alguns sobrados com cercas elétricas, quase nenhum asfalto e bares com anúncios de Pitu e Coca-Cola. A velha usa uma sandália gasta e um vestido florido esverdeado de algodão barato, que pode muito bem ter sido colhido por ela mesma em algum passado não muito distante. Será que ela teve uma vida sofrida? Seus filhos se formaram? Ela chegou a ter filhos? Ela não deve ter ventilador em casa nesse calor demoníaco, não? Ensaio puxar assunto com a velha, mas logo desisto – não temos nada em comum, a não ser nosso destino. A chuva aperta, e rapidamente se transforma num toró que cega a todos da paisagem lá fora.

Vassourada

Posted in Uncategorized by Shepones on 13/06/2014

O futuro refletido num maço de cigarros amassado à beira de uma sarjeta de pedra cinza. Era só mais um maço escarrado e desprezado. Ignorava que o pacote, vivido, tinha história própria: passara por diversas bocas e lábios, das mais finas e macias às mais grossas e carnudas, desdentadas, malcheirosas, podres e delicadas. Pegou o embrulho e enfiou no bolso como se quisesse incorporar um destino desconhecido. Seguiu em linha reta esticando sua vassoura pra lá e pra cá, num vai e vem sutil, enquanto o maço se amontoalhava naquele saco de pano, acostumado às indiferenças – sabia que era só um maço e de certo modo admirava a maneira como a própria insignificância o situava num mundo repleto de tabacos e alcatrões. Naquele bolso quente, foi um maço feliz.

Estiagem

Posted in Uncategorized by Shepones on 13/06/2014

Faz uns dias que não chove. Aqui por essas bandas a seca só traz fome, dor e desespero. As árvores ficam secas e os galhos quebram à menor pressão, evocando destruições distantes que forjaram a identidade do nosso povo. Às vezes chega alguém com um balde oxidado trazendo a água de algum vilarejo próximo, nem sempre a água é boa, pode estar contaminada, sim, mas também pode ser propriedade de alguém que não a deseja compartilhar, seja por medo ou prudência. O desconhecido resseca as pessoas, há pouca água pra muita sede e não tem quem se disponha a cavar um buraco pra trazer a água lá de dentro da terra, bem fundo, com a gana de quem procura furar o último poço de petróleo da Arábia. O fato é que a mesma água que alenta os calos, enruga os dedos. Nosso povo não sabe ao certo se quer saciar a própria sede e viver, não: flertamos com a escassez pra dar algum sentido à bonança que nunca chega. Mas um dia, ah, um dia vai chover – e vai chover incessantemente. E nesse dia, nosso povo vai comemorar afogando a cabeça dos nossos inimigos em lagos fartos que em breve voltarão a morrer.

Saída pra fumar

Posted in Uncategorized by Shepones on 27/02/2012

O cigarro é uma boa metáfora. Talvez nem seja o cigarro em si, mas o ato de fumar. Gosto de dar uma escapada e sacar um cigarro, ter aquela pausa, olhar pro cigarro como se fosse meu próprio espelho, tragar, refletir, expelir,  pensar mais um bocado, olhar pro cigarro de novo num ciclo eterno de cinco minutos e depois mandar o que sobrou do coitado pro cemitério de asfalto. O pior é que eu não fumo. Nem mesmo sei tragar um cigarro – sou do tipinho que gosta de falar que nunca pôs uma palha nos lábios (não que eu seja um mórmon). Às vezes a gente vai lá e simplesmente fuma, sem pensar, mesmo sabendo que o tabaco é acre, cheira mal e impregna. Mas hoje, não. Hoje eu não fumei. Nem um cigarrinho.